Ana Seabra: “No meu grupo de geração acreditávamos que podíamos voar”

PUB

Antiga capitã da Seleção Nacional conta como deu o salto na modalidade, e como a ambição e a ética de trabalho fizeram com que se tornasse uma referência da modalidade.

Ana Seabra é considerada uma das grandes figuras da história do andebol feminino português. É a atleta mais internacional de sempre com 215 internacionalizações pelas Seleções Nacionais, 176 delas pela Seleção A, e fez parte da geração de ouro que conseguiu o inédito apuramento para o Campeonato da Europa de 2008. Numa carreira de sucesso quase toda passada em Portugal, a agora treinadora assume, atualmente, a função de Selecionadora Nacional Sub-18 Feminina, aliada à profissão de professora. No palmarés como jogadora, Ana Seabra tem 11 Campeonatos Nacionais, 9 Taças de Portugal e 8 Supertaças.

Passado: Capacidade de decisão

Iniciou a modalidade na Associação Académica de Águeda com 14 anos. Com que objetivo optou por mudar para o Colégio de Gaia, três anos mais tarde?

“Tive a oportunidade de ter o Paulo Veiga como meu professor, ele que era docente de Educação Física na escola onde eu estudava. A Paula Biscaia era a esposa dele, jogava no Colégio de Gaia e convidou-me a ir uma vez por semana treinar com ela. O objetivo era estar numa equipa mais competitiva e que me desse mais condições para evoluir na modalidade. No último ano que estive na Académica de Águeda, o Colégio de Gaia convidou-me para participar num torneio no Algarve e, no ano seguinte, comecei a ir treinar lá uma vez por semana. Quando fui para o 11º ano, com 16 anos, convidaram-me para ir para lá jogar.”

Em 2002 surge a oportunidade de rumar ao Madeira SAD. O que é que pretendia alcançar quando aceitou o convite?

“Era um projeto mais ambicioso, até mesmo ao nível de competições europeias. Queria experimentar outra realidade e o Madeira SAD dava outras condições a nível de trabalho. Embora os anos que estive no Colégio de Gaia tenham sido de aprendizagem e de grande crescimento, tentei outra oportunidade, outra experiência, porque já estava há muitos anos no clube e queria jogar na Liga dos Campeões e crescer mais um pouco na modalidade a esse nível.”

Depois de sete épocas recheadas de títulos ao serviço do Madeira SAD, assinou pelo rival, Gil Eanes, onde ajudou a conquistar o primeiro campeonato do clube. O que motivou a mudança?

“Na altura, o treinador do Gil Eanes era o Aleksander Donner e eu queria ter a experiência de treinar com ele. Foi uma das coisas que me motivou, porque já estava há sete anos no Madeira SAD e surgiu esta oportunidade de voltar para o continente. Podia estar mais perto da minha família, ver os meus sobrinhos crescer e, acima de tudo, treinar com um ícone do andebol nacional, que transformou a modalidade. Além disso, tive a oportunidade de dar aulas num Instituto Superior, que era uma coisa que eu também ambicionava. O Gil Eanes ainda não tinha ganho nada e eu gosto de desafios, foi um conjunto de situações que me motivou a fazer a mudança, que me fizeram também crescer, não só no andebol, mas também a nível profissional.”

Em 2013, teve uma curta passagem pelo 1º de Agosto, em Angola. Que diferenças encontrou, em relação a Portugal?

“Uma das diferenças foi o profissionalismo que o 1º de Agosto nos apresentou e, na altura, o treinador era o Paulo Jorge Pereira. Financeiramente o clube investia muito nas atletas e tínhamos dois treinos por dia. Uma das coisas curiosas é que treinávamos sempre muito cedo, às 6h30 da manhã, no sentido de permitir às atletas que estudavam e trabalhavam, treinar logo no início da manhã e outra vez à tarde. O Paulo investia muito no trabalho físico e no trabalho de ginásio, para além do treino de campo e eu senti-me realmente muito bem, fisicamente.  A maior diferença, para mim que apenas estive a jogar, foi o tempo que tive para investir no treino e toda a parte de ginásio. Eu acredito no treino e, apesar de ter sido numa altura em que já tinha mais de 30 anos, foi quando me senti no meu pico de forma física. Foi mais uma experiência que veio comprovar que o treino e a dedicação tem os seus efeitos e, depois de ter tido essa experiência, é que consigo perceber que se nós em Portugal tivéssemos outras condições e as atletas pudessem investir um pouco mais, teríamos melhores prestações e resultados por consequência.”

Nunca pensou em ter tido uma experiência mais alargada no estrangeiro?

“Sim, isso sempre passou pela minha cabeça, desde que estive no Colégio de Gaia. Todos os anos tive propostas para ir jogar para o estrangeiro, para equipas de topo. Antigamente era um bocado diferente do que é agora, a nível de condições e oportunidades, não podíamos aliar a prática desportiva à parte profissional e eu tinha o objetivo de terminar o curso primeiro, antes de sair. Quando consegui, comecei a dar aulas como professora na Madeira. Na minha posição específica de ponta esquerda, o investimento que era feito não era tão aliciante em termos financeiros porque, na verdade, em Portugal estava jogar na Liga dos Campeões e a dar aulas. Acabou por não surgir nessa altura a oportunidade certa porque eu não queria deixar de dar aulas. Há sempre um concurso nacional, não como em outras profissões onde podemos sair e depois entrar noutro emprego qualquer. Havia toda uma logística onde se eu saltasse fora, podia prejudicar-me no futuro. Mas sempre me passou pela cabeça e, quando tive a oportunidade de ir para Angola para ter um bocadinho dessa experiência, não hesitei.”

Ao chegar ao Alavarium, em 2013, dá o inédito título ao clube a dois segundos do fim. Ainda se arrepia ao pensar nesse momento?

“São sempre momentos inesquecíveis e que nos marcam, tanto a nós como à história de um clube que nunca tinha sido campeão e acabou por sê-lo por causa daquele momento especial. Fui para o Alavarium quando regressei de Angola e era o clube da minha cidade, onde vivia. Foi naquele pavilhão onde fiz o meu primeiro jogo de andebol e o projeto, na altura, acabou por aliciar-me, porque também estava em casa. Eu aceitei o desafio e fico muito contente por ter ajudado e por ter sido decisiva naquele momento. Se tivesse sido uma outra colega também ficaria, mas aconteceu ter sido eu e fico muito contente por poder ter dado o título ao Alavarium e também por, se calhar, ter mudado um pouco a mentalidade do clube na aposta do andebol e em termos estruturais de querer mais e de ambicionar estar lá em cima. Chegar ao topo é difícil, mas mais ainda é permanecer lá e eles quiseram manter uma estrutura sólida que contribuiu para aumentar a competitividade das equipas nacionais.”

É atleta com mais internacionalizações A por Portugal, com 176. Alguma vez pensou ser possível?

“Isso nunca foi uma preocupação. O meu gosto era sempre poder representar a Seleção Nacional e ajudar a chegar a patamares mais altos. Conseguimos uma vez chegar a um Europeu. Fico contente por ter colaborado tanto tempo, por terem apostado em mim e por ter participado em tantos jogos.”

Qual é a melhor memória que tem ao serviço da Seleção Nacional?

“Não posso deixar de referir o Campeonato do Mundo, na Costa do Marfim, em Sub-20 onde, na altura, ainda nenhuma Seleção tinha sido apurada para um fase final. Desde que entrei no departamento técnico da Federação de Andebol de Portugal, ainda não houve outro Mundial num sítio tão longe de Portugal, que foi uma experiência incrível, com um grupo fantástico e claro que as coisas nos marcam quando são especiais. Alcançámos o 6º lugar, foi um marco excecional e fizemos história. Outro momento é a qualificação para o primeiro Europeu, em 2008, no qual Portugal conseguiu participar. Foi uma junção de mais um momento de história que que nos deu mais alguma ambição de querer lá chegar e é um dos nossos objetivos, atualmente, voltar a chegar lá com outra consistência e com outras condições. Realmente, estes dois momentos foram os que mais me marcaram sem dúvida, com a junção de atletas de talento e qualidade que fizeram com que isso fosse possível.”

Na época 2013/2014 integrou a equipa técnica das camadas jovens de Portugal. Foi uma forma de ir preparando a transição de jogadora para treinadora?

“Eu sempre gostei do treino, desde os tempos no Colégio de Gaia que ia para os treinos das equipas de formação, ficava a ver e desde os 17 anos estive sempre ligada. É uma área que me cativa muito e, portanto, a oportunidade de trabalhar com o departamento técnico da Federação e de colaborar com os treinadores veio ajudar nesse sentido. Gosto muito de ensinar e de ajudar, e foi uma oportunidade que tentei aproveitar da melhor forma. Obviamente que depois da passagem de jogadora para treinadora, essa transição foi mais penosa em termos emocionais, porque podia ter jogado mais algum tempo e perdi uma oportunidade de ser treinadora principal. Na altura foi o que eu decidi e não vou olhar para trás. São oportunidades que temos de agarrar porque queria ser treinadora também, mas custou. Aliás, fui-me preparando, fui lendo muitos artigos de outros jogadores que deixaram de jogar e falava-se muito do pós-carreira desportiva, como é que os jogadores lidavam com essa situação e vi casos em que os jogadores que não o faziam tão bem, porque depois não sabiam como reagir e, também, pelo facto de a vida deles deixar de ser tão ativa. Ao longo do tempo, fui vendo todos os cenários e facilitou um bocadinho a minha preparação mental, ao perceber que depois de jogar, tinha de me manter ativa em coisas que também gostasse e não ficar à espera que elas aparecessem.”

Encerrou a carreira de jogadora em 2014, com a Seleção Nacional. Lembra-se desse dia?

“Foi um dia em que encerrei um ciclo e que custou como já disse, mas foi um dia especial e posso orgulhar-me disso. Foi uma página da minha vida onde tive muito mais alegrias do que tristezas e onde aprendi muito. Tive a oportunidade durante anos de ajudar a Seleção Nacional e era a altura de outras jogadoras talentosas continuarem a fazer esse papel por mim dentro de campo e eu podia ajudar do lado de fora, com a minha experiência. Foi um dia sofrido pelo encerrar desse ciclo, mas saio de cabeça erguida por tudo o que fiz e por tudo o que fui conquistando com a ajuda das minhas colegas, porque ninguém faz nada sozinho. Joguei com excelentes jogadoras, mas foi extraordinário esse dia, triste, mas feliz.”

Presente: A voz da experiência

Depois de se retirar, sentiu que ainda tinhas algo a dar à modalidade, desta vez como treinadora?

“Sim, eu sou uma pessoa muito ativa e, na altura, sabia que ainda estava bem para dar mais algum contributo mas, como disse, foi o fim de um ciclo e acho que precisava de me dedicar e ajudar noutras funções, neste caso como treinadora. Foi o início de algo diferente, mas também muito ambicioso e muito desafiante, em que em vez de jogar, tinha de orientar e tinha de fazer outras coisas que, ao longo do tempo, fui aprendendo com muitos treinadores que me motivaram com as suas formas de gerir. Foi diferente, mas foi bom para mim. Acho que aprendi muito e cada vez mais vou aprendendo e tenho-me sentido parte integrante da evolução destas atletas.”

Quais são as principais semelhanças entre a Ana Seabra jogadora e treinadora?

“É a mesma forma de estar, foco, determinação, vontade de querer mais e mais e de passar essa mensagem às jogadoras, de que as coisas são possíveis. No meu grupo de geração de atletas, que inclui a Virgínia Ganau, a Renata Tavares e a Juliana Sousa, havia uma palavra que não existia que era “desistir”. Tínhamos uma música que era a “I believe I can fly” e acreditávamos que podíamos voar e que juntas éramos muito mais fortes. É essa a mensagem que eu pretendo passar, que sozinhos não chegamos a lado nenhum, mas juntos podemos ir muito longe e, sendo treinadora, tento passar isso e incutir isso nas atletas. Acima de tudo, é fundamental que cada atleta faça o seu trabalho de casa para que as funções coletivas saiam melhor.”

Qual foi a maior dificuldade quando começou a comandar uma equipa?

“Há várias dificuldades, ao nível da pressão competitiva e da responsabilidade que acaba por ser outra. As coisas dependem mais de nós, enquanto treinadores, do que acontecia enquanto atleta. Não é que não exista no atleta a responsabilidade nas derrotas e nas vitórias, mas enquanto treinadora, embora percamos todos, sente-se mais a culpa e queremos fazer com que as coisas corram pelo melhor.”

Como tem sido a adaptação em tempos de pandemia, sendo professora de Educação Física?

“Adaptei-me rapidamente à situação e criei dinâmicas de trabalho, tanto na escola como com as atletas da Federação e conseguimos arranjar soluções, mas tem sido tranquilo. No início foi estranho, mas depois adaptamo-nos e as coisas vão correndo melhor. Este confinamento faz-nos pensar no futuro, em como serão os treinos e jogos daqui para a frente, e fica um ponto de interrogação no ar, porque é tudo muito duvidoso e não sabemos bem como é que vai ser. Tenho andado a trabalhar mais no confinamento do que fora dele, até nos dedicamos um pouco mais a criar, perspetivar e pensar no futuro.”

Patrocinadores Institucionais