António Bessone Basto: “Sem passado não há futuro”

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É um dos mais prestigiados desportistas de sempre em Portugal e, das inúmeras modalidades que praticou, destacou-se no andebol e na natação, tendo defendido as cores do Sporting CP durante mais de dez anos.

Com quase 75 anos de idade, os mesmos de sócio do Sport Algés e Dafundo, clube onde deu os primeiros passos. O resto é história, e é disso que vamos falar. António Bessone Basto nasceu em Oeiras, aprendeu a nadar aos 3 anos, fez a travessia do Tejo aos 8 e com 12 foi internacional pela primeira vez, em natação. Foi nesta modalidade que o atleta participou em oito competições internacionais em representação da Seleção Nacional, como os campeonatos da Europa em Leipzig 1961 e os Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964. No andebol, esteve mais de dez anos a defender a baliza do Sporting CP, clube pelo qual se sagrou pentacampeão. Pela Seleção Nacional, contabiliza quase 50 jogos nesta modalidade. A vida pessoal e profissional do atleta, ficou imortalizada com o lançamento, em novembro de 2019, da sua biografia – Vontade de Vencer – que conta com mais de 500 páginas de histórias. Hoje, a poucos meses de completar três quartos de século, António Bessone Basto continua a praticar desporto todos os dias. Foi na praia, onde passa grande parte do tempo, que o atleta concedeu uma entrevista repleta de histórias e memórias de uma longa, longa carreira.

© Bessone Basto/Vontade de Vencer

Da natação ao andebol

“Estudei na Escola Francisco Arruda e, desde miúdo, tive sempre uma tendência para o desporto com bola, como futebol, ténis, bola ao círculo (que existia naquela altura), voleibol, etc. Tudo em que eu me metia, tinha uma certa habilidade devido à minha infância. Nasci com dificuldades motoras, era disléxico, estive praticamente morto, e como era “gordinho” punham-me sempre à baliza. Apareço no andebol porque, até aos 8/9 anos, queria jogar e aprender tudo, e aproveitava todos os tempos livres para praticar desporto de rua. Mais tarde, os meus pais e o meu avô queriam que eu fosse nadador, porque venho de uma família de nadadores, escondiam-me as bolas e era só piscina e nadar, nadar… Tive um desgosto muito grande. Entretanto, quando fui aos Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964, houve uma série de problemas e, quando regressei, decidi acabar com a natação.”

© Bessone Basto/Vontade de Vencer

António Bessone Basto tinha apenas 18 anos quando deixou de nadar. Foi nessa altura que decidiu experimentar o andebol, no CF Belenenses, juntamente com outro atleta olímpico, Vítor Fonseca. “Deixaram-no mostrar as suas habilidades e a mim nem me deixaram experimentar. Dois jovens, um fica aprovado para jogar no CF Belenenses como avançado, e eu, que ía com o propósito de jogar como guarda-redes, fui excluído. Na vinda, do Restelo para Algés, íamos a falar e as lágrimas vieram-me aos olhos. Era um tipo habituado ao sucesso e essa rejeição afetou-me. Mas a vida é assim mesmo, há males que vêm por bem.”

Passados três dias, foi abordado por Américo Martins – internacional e campeão nacional pelo Sporting CP – que lhe perguntou se tinha interesse em experimentar o andebol de onze no Sporting CP, como guarda-redes. “Pedi ao meu pai, ele deixou, fui ao clube e gostei do que vi. Tinha muita força e comecei a fazer remates de meia distância, lá no campo de futebol de onze, e começaram a reparar que o Evaristo não agarrava uma bola. Aquela bola de andebol, na minha mão parecia uma pedra. O treinador do Sporting, naquela altura, Raul Vidal, viu-me e perguntou quem era aquele miúdo. Ele veio ao meu encontro, apresentou-se e perguntou se eu alguma vez tinha jogado andebol. Eu respondi que só tinha jogado na escola e que era guarda-redes na seleção escolar. Pediu para eu rematar, eu rematei e marquei golo. Depois perguntou-me se eu sabia rematar na passada, respondi que não, ele explicou-me e eu fiz isso, sem saber, e voltei a marcar. Posto isto, o treinador chamou o Diretor, o Sr. Trindade da Silva e disse-lhe para me inscrever e que eu ía jogar a Alverca já no domingo seguinte. Chegou a domingo, eu fui jogar pelo Sporting a Alverca e só marcava livres. Marquei doze golos.”

Capacidades ímpares

“Com a força que eu tinha a atirar a bola para a frente – punha a bola para lá do meio campo – o Sporting CP ganhava mais um elemento no ataque. As defensivas dos adversários não tinham hipóteses. Joguei assim durante algum tempo mas eu nunca gostei muito do andebol de onze, tínhamos que correr na baliza e não era bem a minha praia. Ainda fui campeão regional e fiz algumas coisas interessantes no andebol de onze, mas depois decidi experimentar o andebol de sete. Após aprender com grandes guarda-redes que havia, na altura, com um toque daqui e um toque dali, acabei por trazer para Portugal aquela técnica do guarda-redes não voador e a defender em pé. Esparegatas, pé em cima, o que eles fazem hoje mas eu tenho 1,75m. Como era baixo, de vez em quando não dava mas tinha que defender a baliza toda porque, a nível internacional, jogávamos contra atletas com o dobro da nossa altura, logo não podia jogar com a defesa muitas vezes. Em Portugal era possível, mas no estrangeiro tinha que voar muito. E foi assim, em oito anos ganhámos sete títulos.”

Falar de António Bessone Basto é falar de espírito de sacrifício, motivação e resiliência. E assim foi, ao longo de toda a carreira, em todas as modalidades e no andebol não foi exceção. “Eu não era só guarda-redes, era o chefe daquela equipa toda, porque com a força e a mística que eu trazia do Sport Algés e Dafundo, era muito procurado. Tentaram levar-me para Espanha, para França, para o SL Benfica, para o FC Porto mas o dinheiro não era a minha ambição. Quando diziam, no Sporting, que íamos jogar ao Porto e íamos perder eu dizia que isso nem era opção. Então comecei a mentalizar os meus colegas que o difícil eram os treinos e que os jogos eram para nós nos divertirmos. Hoje, dos que ainda estão vivos, somos como irmãos e gostamos mais uns dos outros do que da própria família. O andebol tem dessas coisas.”

© Bessone Basto/Vontade de Vencer

Nas épocas 1968/1969 e 1970/1971, o Sporting CP terminou a época sem qualquer derrota. Sente que teve um papel fundamental para estes feitos?

“Eu não gosto de dizer isso, isso são as pessoas que dizem (risos). O que eu posso dizer é que, nessa altura, o SL Benfica, o FC Porto tinham uma grande equipa, etc. E havia um desequilíbrio que toda a gente via e eu reconheço que é verdade. Chegava a esforçar-me e a trabalhar muito durante um jogo inteiro, para ganhar por um ou dois golos de diferença. A defender três ou quatro remates seguidos, com jogos a serem decididos no final, quando a bola ficava perto de mim eu lançava contra-ataques sentado no chão, de joelho, de pernas abertas. Jogava em Setúbal, em campo aberto, lançava contra-ataques em que a bola passava por cima dos cabos dos candeeiros e ía cair na mão deles perto da área (risos). A arma grande que o Sporting CP tinha era o contra-ataque e só era possível devido à malta competente que eu tinha na minha equipa, o Manuel Brito, o Carlos Correira, o Alfredo Pinheiro, entre outros. Eu sofria 15 golos num jogo, mas lançava 20 contra-ataques certeiros, metia muitos golos. Lembro-me de um jogo contra a Rússia, que foi das melhores exibições que eu fiz, num Pré-Olímpico, em que perdemos por 23-6. A Rússia, nessa altura, tinha uma equipa muito forte e marcava 40 e 50 golos por jogo. Nesse jogo, sofri 23 e o Brito esteve infeliz porque falhou uns 9 contra-ataques – não só por falha dele mas também por mérito do guarda-redes russo – porque ele também não estava habituado a que lhe aparecesse um calmeirão daqueles à frente. Mesmo na Seleção Nacional eu fazia grandes jogos. Jogámos contra as melhores equipas do mundo.”

© Bessone Basto/Vontade de Vencer

Muito com pouco

“Sem passado não há futuro e nós também fizemos grandes feitos na nossa altura, mas com outras condições. Jogávamos em rinque, íamos jogar em campos com pisos completamente diferentes lá fora, na Constituição, em Almada, era tudo em cimento, chamavam-lhe “o quintal da vizinha”, não foi fácil; os primeiros sapatos que eu tive, roubei a um alemão, viajávamos de comboio para a Alemanha em terceira classe, nem água havia. Mas conseguímos fazer coisas boas no andebol.”

Personalidade difícil, competente a 200%

“Os treinadores tinham muito a mania por causa da minha maneira de ser, para mim não havia ambientes, era um tipo que galvanizava a equipa, não era uma pessoa fácil. Mas tenho muita pena que, naquela altura, a rapaziada só treinava três vezes por semana e eu treinava duas vezes por dia, às vezes três. Ainda hoje, vou fazer 75 anos e, regularmente, vou de Cascais até ao Forte de Salazar e volto, a nadar durante uma hora e meia, por exemplo. Com esta idade continuo a quero fazer cada vez melhor, já não pode ser, mas continuo a exigir essa disciplina. A vida não é como começa, é como acaba.”

Mais de 2000 troféus e medalhas

“O que é mais engraçado neste meu percurso pelas modalidades, principalmente no andebol, é que tenho as condecorações todas, tudo e mais alguma coisa, cerca de 2000 troféus e não sei o que é que vou fazer a tudo isto. Agora, os grandes troféus que eu ganhei foram três: o facto de o desporto ter feito de mim aquilo que eu sou hoje, ter salvado 103 pessoas de morrerem afogadas ao longo da minha vida e as amizades que eu fiz no desporto. Devo tudo ao desporto.” Para Bessone Basto, estes números são o reflexo de uma carreira longa, mas afirma que “o grande troféu que tenho e que me comove são as amizades que granjeei. Tudo o resto, o ouro, a prata, vêm depois. A minha camisola de pentacampeão pelo Sporting CP está em casa de um amigo meu, no museu particular dele. Tenho coisas lindas, em cristal e estanho que vou espalhar por aí, não quero fazer um museu. Tudo o que eu ganho, hoje em dia, é para oferecer às crianças e aos amigos. Quando os meus amigos fazem anos, dou-lhes coisas minhas em vez de dar perfumes ou chocolates. Ofereço troféus e medalhas de 1962, por exemplo. Vou a uma ourivesaria, ponho a medalha dentro de uma caixinha e quando lhes ofereço, as pessoas comovem-se.”

45 vezes de Quinas ao Peito, no andebol

As qualidades ímpares daquele guarda-redes fora do normal levaram-no a dar o salto até ao patamar mais alto do andebol, a Seleção Nacional. António Bessone Basto defendeu as cores do nosso país por 45 ocasiões, tendo inclusive ganho dois Jogos Luso-Brasileiros em Andebol, e outros tantos em Natação. Para o atleta, o sucesso alcançado ao serviço de Portugal deveu-se, também, aos treinadores com quem foi trabalhando ao longo da carreira. “Fizemos maravilhas, com pouco fizemos muito. Aquilo era puro amadorismo, treinávamos pouco, o que tínhamos naquela altura era grandes treinadores. O Professor Machado, que foi o homem que me levou pela primeira vez à Seleção Nacional. Tenho uma vaidade em relação à minha geração, uma andorinha não faz a primavera e eu não tinha sido aquilo que dizem que eu fui, se não tivesse tido a rapaziada que tive ao meu lado. Na primeira internacionalização, havia um guarda-redes chamado Ferro, que era o meu ídolo, era meu adversário no FC Porto e levava-me para casa dele. Ele lesiona-se aos sete minutos do jogo e o Machado da Costa manda-me para a baliza. Lembro-me de o Ferro me dizer “puto, ajuda a gente”, são coisas que nos marcam. Havia jogos em que estávamos a perder por 3 e eu conseguia mudar a motivação da equipa. Dizia sempre que os meus suplentes eram tão bons quanto eu mas eu destacava-me em alguns pormenores.”

Lealdade e valores

Por onde passou, António Bessone Basto nunca trocou de clube em cada modalidade. Os valores e os ensinamentos que lhe foram transmitidos fizeram com que o atleta resistisse sempre às investidas dos rivais. “Estive tanto tempo no andebol, também pelo facto de ter sido o Sporting a arranjar-me um emprego. O SL Benfica ofereceu-me bastante dinheiro para ir jogar para lá e, mais tarde, o FC Porto ofereceu-me mais ainda e eu não saí. Primeiro, porque o meu pai dizia-me que eu não era mercenário. Ele era um tipo teso mas dizia sempre para eu pôr os pratos na balança, em que de um lado estava o dinheiro e no outro estavam os colegas de equipa, o público que me adorava e que iria dizer que eu era um traidor e um pesetero, no dia seguinte. E o meu pai tinha razão. Não estou nada arrependido daquilo que eu fiz. Nunca mordi nem cuspi no prato onde comi. Se tiver que me zangar com um grande amigo por causa do clube, assim será. Os clubes são centenários, nós somos como a água que passa por baixo da ponte.”

Um dos melhores em tudo por onde passou

António Bessone Basto foi ainda praticante de hóquei em patins, Judo, Karaté, Basquetebol, Ténis, Ténis de Mesa, Râguebi, para além da Natação, da Caça Submarina e, claro, do Andebol. Quando questionado acerca de como foi sempre gerindo a carreira e as opções, o atleta respondeu que “foi fácil” e que deve muito ao primeiro clube, o Sport Algés e Dafundo. “Há duas coisas principais que me caracterizam: sou uma figura do concelho de Oeiras e sou do Sport Algés e Dafundo do qual o meu avô foi fundador. Nasci numa casinha em que chovia lá dentro, os meus pais passaram dificuldades e eu tive que fazer a pulso. Desde pequenino que fui educado na rua, com pescadores na praia e com ciganos. Esses eram os meus amigos e foi com eles que eu aprendi. Jogava à bola, hóquei em patins com um caule de uma couve, só queria fazer desporto porque não conseguia estudar. Foi a natação que me tornou mais equilibrado e, depois, tive a sorte de, para além do Sport Algés e Dafundo, conhecer um grande homem que também me ajudou muito, o Dr. Calvet Magalhães – diretor da Escola Francisco de Arruda. Como não havia condições de inverno para treinar natação, tinha que fazer outras coisas. A minha manutenção foi feita a jogar basquetebol, no Sport Algés e Dafundo, depois andebol, râguebi, hóquei em patins, ténis de mesa, ténis, fiz um pouco de tudo. Quando comecei no andebol, iniciei também, aos poucos, a Caça Submarina. Fui evoluindo até chegar aos melhores do mundo nessa modalidade até que larguei o andebol. Fui passando de umas modalidades para outras e foi o desporto que fez de mim aquilo que sou hoje. Tive também a sorte de ter grandes pessoas ao meu lado, é importante referir.”

Atleta até ao fim

Num contexto muito recente, António Bessone Basto tinha tudo pago – e acordado com o patrocinador – para fazer a travessia do Estreito de Gibraltar, que consistia em atravessar de Ceuta para Tavira, num total de 17km. Outros dos objetivos do atleta passavam por realizar provas de 5000m de águas abertas, no Campeonato da Europa da Hungria, em Masters, (já pago também) e outra prova de 10km em Espanha. Em cima da mesa estava, também, a mudança para Espanha para representar o clube campeão nacional, Xerez, após receber um convite do mesmo. António afirma que vai “virar a página”, apesar de continuar a participar em algumas provas em Portugal, mas não esconde o desejo de rumar a Espanha. No entanto, a pandemia fez com que António tivesse perdido o dinheiro dos patrocínios, bem como as passagens aéreas. Com quase 75 anos, a paixão pelo deporto faz com que o fim esteja longe de chegar. “Não paro, treino 1h30 todos os dias no mar, aliás, nunca parei. Mesmo quando estava tudo parado fazia caminhadas de 2h30 à hora do almoço, com a máscara na cara, por zonas onde não me cruzasse com ninguém, fazia bicicleta em casa e, agora, vou fazer um ginásio privado. Aquilo que não me deixaram fazer, a natação, que eu queria ter feito até mais tarde, estou a fazer agora. Não me dou por vencido, quero ser um exemplo para a juventude e para os amigos, porque é por eles que eu vou continuar a querer fazer coisas até ao último dia.”

A evolução da modalidade aos olhos de quem a conheceu noutros tempos

“O andebol moderno é mais atlético. É tudo melhor. A resina, as bolas almofadadas… Quando jogava, levava sete ou oito vezes com a bola na cara, porque atiravam de propósito para eu desviar a cabeça, mas eu não desviava. Hoje em dia, o jogador que atira a bola para a cara de um guarda-redes, é excluído. Os sapatos eram diferentes, os pavilhões, os pisos, etc. Vou confessar uma coisa, quando entrei no Pavilhão João Rocha pela primeira vez, tentava conter as lágrimas mas não conseguia. O que seria, no meu tempo, se tivéssemos tido um pavilhão daqueles, eu e alguns colegas merecíamos ter jogado num pavilhão assim. É como hoje entrar numa piscina de 50m em Rio Maior ou no Estádio Nacional. Treinava numa piscina de 16m com água fria e os atletas de hoje em dia não fazem mais do que eu fazia no meu tempo.”

O andebol no coração

“Claro que o andebol tem um lugar muito especial no meu coração. Não só pelas amizades, mas porque também faz parte da minha história. No andebol, tudo o que fiz não o podia ter feito na natação, por exemplo. Tenho uma grande saudade. Naquela altura, tínhamos muito pouco e as condições eram más, mas havia muita gente que gostava imenso da modalidade. Tive muita pena de ter abandonado, porque estava no auge da minha forma física, mas tive necessidade de o fazer para ganhar dinheiro para a minha família. Fui sempre sério nas minhas opções.”

© Bessone Basto/Vontade de Vencer

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