Filipe Cruz: “Esta geração da Seleção Nacional supera a nossa”

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Antigo jogador da Seleção Nacional e quinto atleta com mais internacionalizações, fez uma viagem ao passado e revelou as dificuldades na mudança para Portugal para jogar andebol.

Filipe Cruz nasceu em Angola mas defendeu as cores de Portugal por 150 vezes. Começou a jogar andebol numa fase tardia mas os dotes para a modalidade fizeram dele um jogador de referência no panorama da modalidade no nosso país. Das oito fases finais de grandes competições em que a Seleção Nacional esteve presente, Filipe Cruz só não participou nos Europeus de 2004 e 2006. Canhoto e com um estilo explosivo nos tempos áureos de jogador, o agora treinador, revelou, em entrevista, os melhores momentos e as principais dificuldades enquanto atleta.

Passado: Uma aposta arriscada

Começou a jogar andebol em Angola. Como é que surgiu o andebol na sua vida?

“Na escola, por influência dos amigos, porque eu na altura até jogava futebol. A maior parte deles jogava andebol e eu acabei por trocar de modalidade ao fim de dois anos. Quando eu me dediquei seriamente ao andebol nunca mais quis saber de outras modalidades, deixei de lado até o meu gosto pelo futebol. Eu comecei a jogar andebol já muito tarde, com 17 anos e, portanto, dediquei-me logo a 100%.”

Chegou a Portugal em 1991/1992 para representar o Comércio e Indústria. Como é que foi este processo?

“Na altura dessa mudança não tinha grandes expetativas, confesso. Eu era jovem e a prioridade não era jogar andebol, mas sim, sair da situação que o país vivia na altura. Consegui sair de Angola com muita dificuldade. Depois, quando cheguei a Portugal tive a ajuda do meu amigo Paulo Bunze, que me orientou e arranjou a oportunidade para treinar no Comércio e Indústria. Foi uma mudança um pouco radical e eu não sabia o que é que me esperava, aliás, quando aterrei no aeroporto da Portela o meu sentimento era de querer regressar a Angola. Mas com coragem e com muita sorte, naturalmente, consegui ter sucesso nesse processo. Estava escrito que tinha que ser assim.”

Como é que foi a adaptação ao andebol em Portugal?

“Quando eu comecei a jogar em Portugal, cheguei à conclusão de que não percebia nada de andebol. Mas, atendendo à oportunidade e às condições que tinha na altura, percebi que tinha tudo o que precisava e que tinha que trabalhar para alcançar um nível muito maior. E foi o que fiz, meti “mãos à obra” e trabalhei muito. Naquele tempo, as equipas só podiam ter dois estrangeiros e tinham que pagar uma cota à Federação por cada um. Esses estrangeiros estavam divididos por categorias, o Grupo A era referente às 10 principais nacionalidades ligadas à modalidade, e por aí fora. Eu fazia parte da categoria referente às última letras do abecedário, porque Angola não tinha expressão nenhuma no andebol mundial. Por cada estrangeiro do Grupo A, os clubes tinham que pagar uma cota de 100 mil escudos, enquanto que pelos dos últimos Grupos tinham que pagar 500 mil (risos). Só para que se perceba o quão difícil foi para o Comércio e Indústria ter que assumir esse risco e investir essa quantia num jogador que ninguém sabia o que ia render. Na altura o ABC tinha grandes jogadores, como o (Vladimir) Bolotsky e o (Viktor) Tchikoulaev, o Ginásio do Sul tinha também dois romenos muito bons, o SL Benfica também e, portanto, o Comércio e Indústria tinha a possibilidade de contratar um jogador russo – que lhes ficaria muito mais barato – mas preferiu investir em mim. A partir daí, fui trabalhando e ultrapassando etapas. O facto de eu ter treinado, no meu último ano no Comércio e Indústria, com o Ljubomir Obradovic deu-me essa capacidade de trabalho árduo e técnica individual e dei um salto enorme como jogador, até chegar ao Belenenses. Quando lá cheguei já tinha a nacionalidade portuguesa e as coisas foram muito mais fáceis. Foi só enquadrar-me na equipa, porque eu estava bem fisicamente, já tinha melhorado também tecnicamente e só tive que ir crescendo e aprendendo com os meus colegas.”

Foi em Portugal que alcançou todos os títulos e onde viveu o auge da sua carreira, particularmente nos sete anos no ABC. Sente que cresceu muito enquanto jogador fruto também da grande geração de atletas com quem jogava nessa altura?

“O ABC foi, para mim, o expoente máximo da minha carreira. Cheguei a Braga e encontrei um andebol completamente diferente, ou melhor, eu percebi melhor esta modalidade quando lá cheguei. Quando eu ainda jogava no Belenenses e defrontava o ABC já tinha a noção de que aqueles jogadores estavam num patamar superior. Eles sabiam tudo sobre nós (risos), os guarda-redes já sabiam para onde é que nós íamos rematar, etc. Foi uma prazer enorme jogar lá, foi importante fazer essa trajetória e em cada etapa da minha carreira em Portugal aprendi muito.”

Na seleção nacional atingiu o numero redondo de 150 internacionalizações. Apesar de não ter nascido em Portugal, ajudou a Seleção a conquistar resultados importantes. Sempre se sentiu “em casa” na Seleção Nacional?

“Eu fui chamado pela primeira vez à Seleção Nacional em 1994, no ano do primeiro Campeonato da Europa. Eu era miúdo e estava ainda meio assustado (risos) por estar no meio daquelas “feras” todas. Mas depois, pouco a pouco, fui-me sentindo muito mais cómodo e muito mais à vontade. Houve até momentos em que eu me sentia muito mais à vontade na Seleção do que no clube onde eu jogava. Em Portugal, senti-me sempre como se estivesse em casa. Ainda hoje sinto isso quando chego a esse país. Houve até alturas em que, quando eu regressei a Angola, me sentia um estrangeiro aqui e em Portugal não.”

Como é que foi a experiência na andebol espanhol?

“Eu fui para Espanha já numa fase descendente da minha carreira. Fui para o CP Almería, mas as coisas não correram muito bem, tive alguma dificuldades no processo de adaptação. Na época a seguir fui para o Covadonga, de Gijón, e aí já correu melhor e ainda joguei no Teucro. Em boa verdade, na altura, havia uma diferença grande e interessante entre o andebol em Portugal e em Espanha. O andebol espanhol também estava em alta e muitos dos melhores estrangeiros jogavam na Liga Asobal, era outro nível. Em função da diferença competitiva que havia entre as duas Ligas (portuguesa e espanhola), é normal e natural que muitos dos melhores jogadores do mundo estivessem ou quisessem ir para aquele campeonato.”

Nos últimos anos como jogador voltou a Angola. Tinha esse objetivo de terminar a carreira no país onde nasceu?

“Não, na verdade nada foi planeado. Eu regressei a Angola com 36 anos e o objetivo desse meu regresso era para ser treinador, fui muito cobiçado para que isso acontecesse. Quando lá cheguei as dificuldades foram enormes e para que eu não estivesse parado, ainda podia jogar no campeonato angolano, perfeitamente. Coincidiu com o facto de o 1.º de Agosto me ter oferecido o primeiro contrato como treinador e então, eu ainda tentei ocupar o cargo de treinador/jogador mas desisti ao fim de três jornadas (risos), não funcionava. Porquê? Porque como os jogadores não tinham uma cultura tática grande, o que acontecia era que quando eu estava em campo os jogadores só queriam passar a bola para o treinador (risos), então optei por me retirar. Quando passei a exercer apenas a função de treinador as coisas começaram a fluír e, nesse mesmo ano, ganhámos todas as competições em que estávamos inseridos, inclusive uma inédita Taça dos Clubes Campeões Africanos.”

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Desde que é treinador nunca mais esteve ligado a Portugal e fixou-se em Angola. Era algo que tinha como objetivo depois de se retirar como jogador?

“Passa-nos muita coisa pela cabeça no que diz respeito ao futuro, quando somos jogadores. Mas, sobretudo no último ano, como tinha muita gente a tentar persuadir-me para regressar a Angola acabei por fazer esse caminho. Eu tive o privilégio de treinar o 1.º de Agosto e, aos poucos, fui ganhando experiência como treinador. Essa paixão sempre esteve comigo, algo adormecida, mas o “bichinho” esteve sempre aqui. A minha vida sempre se resumiu ao andebol e ao desporto e sempre fiz tudo com muito amor. Quando tive a oportunidade de treinar a Seleção Nacional de Angola – e olhando para trás – mal eu sabia que a minha vida iria dar a reviravolta que deu.”

Em Angola já treina há muitos anos o 1.º de Agosto mas pelo meio passou pelo Marinha de Guerra. Quais as razões para essa mudança?

“A Marinha de Guerra é um projeto que nasceu a partir do 1.º de Agosto, já na minha era, ou seja, é praticamente a equipa B. Eu fui treinar esse clube porque estava num projeto com a Seleção Nacional de Juniores, que foi disputar o Campeonato do Mundo no Brasil em 2015 e como 90% dos jogadores dessa Seleção eram atletas do 1.º de Agosto eu organizei as coisas de forma a que todos eles fossem para o Marinha de Guerra, para que jogassem juntos e ganhassem ritmo na competição de seniores durante o Campeonato Provincial. Quem me foi substituir na equipa principal, ou seja, no 1.º de Agosto foi o Viktor Tchikoulaev. Mas depois desse Campeonato do Mundo de Juniores, ainda na mesma época, voltei outra vez para o 1.º de Agosto e o Viktor Tchikoulaev assumiu a Marinha de Guerra.”

Levou a Seleção de Angola ao Mundial 2019. Como é que foi essa experiência e que sentimento teve para si, enquanto natural daquele país?

“Esse foi o meu primeiro Mundial ao nível de seniores masculinos. Eu já tinha apurado a Seleção Masculina para o Mundial de França, em 2017, só que não pude ir porque estava com a Seleção Feminina nos Jogos Olímpicos e na CAN, aqui em Angola. Como não tinha tempo para preparar a equipa masculina preferi não estar com eles. Em 2019 estive nesse Mundial e, apesar dos resultados, foi uma grande vitória porque estivemos num grande palco a jogar contra as melhores equipas e jogadores do mundo. Apesar de que, com a equipa que tínhamos, as hipóteses de jogar de igual para igual com as grandes potências mundiais era reduzida. Ainda assim, conseguimos ter momentos muito bons, em alguns jogos conseguimos mesmo equilibrar mas não tínhamos capacidade física para poder aguentar o ritmo. O sentimento é de grande satisfação, por voltar aos grandes palcos desta vez como treinador. Foi um desejo que se tornou realidade.”

Acompanha a seleção portuguesa? Como é que avalia este 6.º lugar no Euro 2020?

“Acompanho e vibrei com esta campanha recente da Seleção Portuguesa no Campeonato da Europa. O andebol português evoluiu muito mesmo. Esta geração, em certa medida, supera a nossa, completamente. As estatísticas falam por si. Se olharmos para os últimos anos, a nível de clubes, Portugal está bem representado nas competições europeias, as equipas têm jogado muitíssimo bem. E tudo isto, culmina com a excelente participação da Seleção Nacional no Euro 2020 que, com o 6.º lugar, bateu o nosso recorde.”

Considerando o seu auge como jogador e o seu estilo de jogo, considera que tinha lugar na primeira linha desta seleção de hoje em dia?

“É bem verdade que tinha que acompanhar a evolução que o andebol teve. Hoje em dia, o andebol está muito mais rápido e isso seria uma vantagem para mim, se hoje fosse jogador. Eu às vezes fico a pensar como seria se eu jogasse hoje em dia, com esta rapidez toda, para mim era uma maravilha e eu acho que renderia muito mais. Agora, se era titular na Seleção Nacional? Não sei, mas acho que tinha lugar na convocatória dos 16 ou 18 (risos).”

Tem em mente um regresso a Portugal?

“Não sei, sinceramente. A vida dá muitas voltas e nós não sabemos o dia de amanhã. Para já tenho os meus projetos e esses passam por aqui, por Angola e por África. Tenho uma grande paixão por África porque sinto que há muitos países africanos que têm muito potencial e matéria-prima, mas não têm quem os possa orientar adequadamente. Esse desafio faz com que eu sinta que o meu lugar é aqui. Sinto que tenho que ajudar esta gente a crescer no andebol. Só quem está aqui envolvido, consegue perceber que os recursos humanos existentes aqui precisam de know-how para ajudá-los a crescer. Na minha opinião, Portugal está muito bem servido ao nível de treinadores e África precisa de muito mais. Isto não quer dizer que eu não possa mudar, caso surja um convite irrecusável, mas para já, o que me prende aqui é muito forte.”

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